Padrão de miss como reflexo da sociedade?
Em se tratando de Miss Universo, o padrão de miss era representado até 2022 como sendo a participação única e exclusiva de mulheres solteiras, jovens (o limite de idade é de 28 anos), sem filhos e que jamais tenham sido casadas, além de suas vencedoras serem majoritariamente brancas. O fenômeno é semelhante ao Brasil, que mesmo com população miscigenada e de maior parte negra, apenas foram eleitas 5 não-brancas (Deise Nunes/1986, Jakelyne Oliveira/2013, Raissa Santana/2016, Monalysa Alcantara/2017 e Mayra Dias/2018), desde a primeira edição de Miss Brasil em 1954. Até 2012 também era exigida que todas candidatas fossem cisgênero no concurso internacional e somente em 2019 uma candidata se inscreveu em etapa estadual brasileira ganhando repercussão midiática, Nathalie de Oliveira, Miss Bom Jardim e finalista do Miss Rio de Janeiro 2019 (Top 6).
A contabilização das candidatas não-brancas (negras ou indígenas) integrantes do grupo de finalistas dos últimos 15 anos, entre os concursos de 2008 a 2023, exceto de 2020, de um total de 75 finalistas, é de somente 12 (16%). Eram pardas ou pretas as misses das seguintes edições e estados: 2013 (MT e BA), 2014 (AP), 2016 (MA e PR), 2017 (PI e SE), 2018 (AM e BA), 2021 (AM), 2022 (AM) e 2023 (AM e MT), sendo 2021 e 2022 a mesma candidata, Rebeca Portilho, do Amazonas. Quatro delas conseguiram vencer em seus anos (2013, 2016, 2017 e 2018).



Mesmo que 16% das finalistas dos últimos 15 anos fossem negras, o que passa longe dos 56,1% da população preta e parda do Brasil segundo o Censo de 2022, essa falta de representatividade ainda é uma ferida difícil de ser tocada no meio: "O que seria um padrão de miss? Essa pergunta é vasta. Mas o que posso responder é que sempre se esperou de uma miss: beleza, simpatia. E, apesar disso ser uma coisa relativa, 'o que é a beleza?', eu vejo que o inconsciente coletivo, você pega várias mentes e vão achar aquele ser humano bonito, aquele feio. É por isso que tem aquele corpo de jurados. Qual é o ponto? Por mais que [exista] diversos critérios como inteligência, comunicabilidade, empatia, cada vez mais sejam importantes, a beleza é fundamental. Não vejo nada de errado nisso”, avalia Henrique Fontes.
“Você pega [isso] muitas vezes como um bode expiatório, mas poxa. Até mesmo muito dos críticos que falam 'ah, porque a beleza, tem que se importar com a beleza interior'. Mas eu já vi pessoas que falam isso e tão assistindo um concurso, não ganha uma tão bonita fisicamente e são os primeiros a dizerem que isso é marmelada, que está estranho. Então eu vejo como um conjunto de qualidade quase que como um esporte, alguém que vai buscar esse ideal de beleza. O que seria esse ideal? É o que as pessoas aprovam naturalmente. Você não consegue meter beleza goela abaixo. O que é belo no geral é considerado e ponto. Essa beleza pode vir acompanhada de bondade, carisma, talento, outras qualidades importantíssimas excelentes. Eu não acredito em beleza sem o resto também. Mas eu ainda acho que a beleza é fundamental em um concurso de beleza, isso eu acho", complementa o diretor do CNB.
Essa questão também se expande para outros países da América Latina, que foram colonizados com mão de obra de pessoas escravizadas trazidas de diversas partes da África. Tanto Brasil quanto Venezuela, Colômbia e México, os quatro países com maiores populações negras na América Latina e que têm forte mercado nos concursos de beleza, não costumam ter essa parte da população representada ou vencendo seus concursos para o Miss Universo ou Miss Mundo.
“Isso está atrelado ao que a gente vê na sociedade. É só uma reprodução da sociedade, que enxerga só um tipo físico bonito e o reproduz. Acho muito curioso, quando a gente vê a Colômbia, e até mesmo o Brasil que tem quase 60% da sua população negra, mas quando você vai olhar as misses esses 60% não está representado e isso acaba se refletindo em tudo. Tudo que é o espaço de representatividade é o reflexo da sociedade. Se a sociedade só vê as mulheres com mais de 1,7 como bonitas, não vê as mulheres negras, pretas e pardas bonitas, elas não vão ser eleitas. Elas dificilmente vão ser eleitas”, afirma Elaine Cristina, que organiza o Concurso Belezas do Brasil.
A presença de misses negras
Em 2021 e 2022 duas mulheres negras venceram o Concurso Beleza do Brasil, que foi alvo de mensagens de cunho racista na internet: “Ano passado foi pavoroso o que a gente sofreu, inclusive falaram que para ganhar o Belezas do Brasil tinha que tomar banho de piche [asfalto de forma líquida]. A gente não vê essa coisa enquanto ganha um monte de mulher branca seguida da outra. Agora, quando ganhou duas negras seguidas da outra, as pessoas passaram a questionar. Isso é reflexo da sociedade. A sociedade, se você julgar um concurso, vai fazer um concurso e a sua visão for eurocêntrica, é isso que vai refletir no concurso. Agora se a sua visão for abrangente, isso não vai aparecer no concurso”, diz Elaine Cristina.

O histórico de participação de negras ao longo dos últimos 70 anos é escasso: “Creio que foi o preconceito racial que perdurou no mundo inteiro fruto da escravidão. O Miss América tinha nas suas cláusulas até os anos 40 a proibição de participação de mulheres não anglo-saxônicas. Em 1970, 49 anos depois de criado, foi que a primeira negra concorreu ao Miss América. E a primeira eleita foi Vanessa Williams, em 1983”, informa Roberto Macedo.
Ele diz que no Miss Universo, somente em 1957 a primeira negra participa, da Martinica. Já a primeira negra a vencer o concurso foi Janelle Commissiong, de Trinidad & Tobago, 20 anos depois, em 1977. “Há controvérsias sobre a primeira negra no Miss Mundo, mas a primeira eleita foi Jennifer Hosten, de Granada, em 1970. No Brasil, a primeira negra a disputar um concurso de miss foi Dirce Machado, do Clube Renascença, 4ª lugar no Miss Guanabara 1960. Vera Couto, do mesmo clube, tornou-se a vencedora do estadual quatro anos depois e ficou em 2º lugar no Miss Brasil, tornando-se a primeira negra finalista num grande concurso mundial, ao ficar em 3º lugar no Miss Beleza Internacional, em Long Beach, além de ser escolhida Miss Fotogenia. Foi para ela a marchinha Mulata Bossa-Nova”, lembra Macedo.
“Os afrodescendentes não têm o mesmo espaço que os descendentes europeus. Tanto que existe um sistema de cotas que busca algum equilíbrio. Algumas pessoas são a favor, outras contra, mas é uma luta. Uma luta deles e seria irresponsável eu te dizer que não existe racismo [no mundo miss]. Não é um racismo de 'vou te tirar por isso ou aquilo', mas é o inconsciente trabalhando, são as raízes de um Brasil que não foram tão boas. Infelizmente é fato, existiu e ainda existe [racismo]. No nosso grupo já participaram moças afrodescendentes lindíssimas, a Ana venceu, outras chegaram muito perto. Mas eu também acho injusto eleger alguém porque é afrodescendente, descendente de indígena ou trans. Não, a inclusão tem que haver, a recepção tem que ser 100%, porém tudo tem que acontecer naturalmente. Vencer porque somou mais pontos, porque foi realmente a vencedora. Não tem como impor nada, as coisas têm que ser justas e no nosso concurso a gente busca essa justiça sempre", ressalta Henrique Fontes.

As medidas padronizadas 90-60-90
Pelo menos até o Miss Brasil 2015 exibido na TV Bandeirantes, os apresentadores faziam questão de ler para a plateia e o público de casa o peso da candidata e o tamanho do busto, cintura e quadril. Tudo atribuído a uma proporção considerada adequada para uma miss: “Existia um padrão de miss, principalmente no Brasil. Havia as medidas certas: 90-60-90, que eram as medidas de busto, cintura e quadris em centímetros. A miss deveria ser alta: 1,75m era a altura ideal. Esse padrão permaneceu por muitas décadas, até que as feministas entraram em cena, reclamando dos concursos de beleza, que ‘transformavam as mulheres em objetos’. As medidas deixaram de ser exigidas, mas surgiu o padrão da magreza excessiva. Hoje já não existe mais nenhuma exigência em relação a padrões de medidas. Antes os concursos eram para solteiras de reputação ilibada. Uma moça ‘mal falada’ não podia ser miss. Era a exigência velada da virgindade”, afirma o jornalista Roberto Macedo.
“Eu tenho dúvida se esse padrão foi um mito que foi concretizado ou se foi algo que foi descoberto. A partir do momento que as misses que ganhavam tinham essa altura ou esse corpo, as pessoas passaram a criar isso [de regra na mente]. A gente tem na história misses que ganharam, inclusive na década de 60, que não eram altíssimas. Acho que é uma mistura. Talvez tenha começado como uma coincidência, mas não para o Miss Mundo. O Eric Morley sempre mediu as misses dele. Para o Miss Universo eu não sei se houve, quando eu ouço as misses mais antigas falando, elas falam que em nenhum momento elas foram medidas. No Miss Mundo isso existia, então talvez seja a partir disso a questão do padrão”, opina Elaine Cristina.
O Miss Mundo, apesar de ter passado pela fase rígida de medir suas candidatas, deixou de anunciá-las na final do seu show a partir de 1982. Contudo, ainda há concursos que pregam religiosamente o rito: “As medidas até hoje existem no Miss Grand International, o que eu acho inacreditável. Já sugeri a eles tirarem, [é] uma coisa patética, passada, ao meu ver. O Miss Mundo veio primeiro em tirar as medidas. Em 1982 a Julia Morley decide que o concurso não vai mais anunciar as medidas das candidatas, que o mais importante é beleza, personalidade, mas jamais o quanto ela tem de busto, quadril e cintura. Até porque muitas medidas eram fantasiosas. Hoje mesmo você vê meninas que mentem na altura, no peso, enfim, a gente nunca se ligou em medida. A gente pede medida para saber tamanho de biquíni, se tem alguma roupa de patrocinador, mas a gente nem sequer [avalia]. Pode reparar, no CNB você não vê altura, acho tudo isso uma bobagem, você não pode reduzir mulheres a números. Porém, alguns concursos ainda existem, os mais tradicionais acham um máximo [pela] tradição. Eu, particularmente, não curto”, declara Fontes.
Novos tempos
Se até pouco tempo as mudanças pareciam nunca chegar, os últimos anos mostraram um caminho a ser seguido e com ainda mais abrangência: “As misses estavam em busca de um casamento nas décadas de 1950 e 1960. A partir de meados de 1970 as universitárias começaram a concorrer e atualmente vemos muitas profissionais disputando um título de beleza. Hoje o Miss Universo já permite casadas, mães, grávidas e trans. E a partir do próximo ano não haverá limite de idade para concorrer”, lembra Roberto Macedo.
Tais movimentos de um importante e conhecido concurso como o Miss Universo segue o que outros, ainda mais velhos, já vinham fazendo recentemente. Se o Brasil conseguiu eleger quatro das suas misses negras nos últimos 10 anos, outros países apostaram em reformulações drásticas e benéficas, que incluíram indiretamente até mesmo o não envio de candidaturas para concursos internacionais, como é o caso do Miss Germany, que em 2022 foi vencido por uma brasileira negra, Domitila Barros, aos 37 anos, nascida e criada na periferia do Recife, em Pernambuco.

O formato do Miss Alemanha — que não é mais o concurso que detém a franquia que elege a alemã para o Miss Universo e que fará 100 anos em 2027 —, foi modificado em 2020 após ser alvo de críticas pela objetificação das mulheres, conforme a Deutsche Welle. O quesito beleza deixou de ter peso, para dar espaço a aspectos como autenticidade, diversidade e tolerância. O concurso também passou a permitir a participação de mulheres casadas e mães, e elevou o limite de idade em dez anos para incluir mulheres de até 39 anos. A idade mínima é de 18 anos. Em 2021, uma mãe de 33 anos foi a vencedora e neste ano foi uma jovem de 20 anos estudante de teologia.
Outro ponto que os novos tempos traz é em relação aos discursos, potencializados na etapa das entrevistas, mas que também podem ser vistos em linguagem não-verbal — de discurso — durante o desfile de traje típico. Na edição de 2020 do Miss Universo, a Miss Mianmar Thuzar Wint Lwin levou uma bandeira pedindo orações para seu país, que naquele momento vivia há três meses sob um regime militar que derrubou sua presidente; a Miss Singapura Bernadette Belle pediu para acabar o ódio aos asiáticos, um ano após a eclosão da pandemia ter começado a se espalhar no continente e muitos acusarem a China e os asiáticos no geral como responsável pelos primeiros surtos; e a Miss Uruguai Lola de Los Santos, assumidamente bissexual, demonstrou apoio a toda comunidade LGBTQIAP+.

O Miss Universo é o único dos concursos grandes que seguiu pelo mesmo caminho do Miss Germany com as mudanças recentes dos últimos dois anos. São passos necessários para dar sustentação a um segmento que parece seguir respirando por aparelhos, mesmo que continue movimentando economias e mercados locais e específicos, principalmente o asiático. Esses novos tempos e transformações serão suficientes para sustentar o meio?

Perfeita escolha de fotos! Amei.